Principais cuidados jurídicos na relação entre desenvolvedores de games (developers) e distribuidoras/publicadoras (publishers)

Por Nathally Reis*

 

Apesar de terem surgido há mais 50 anos e, hoje em dia, comporem uma grande indústria multibilionária que movimenta diversos setores, os jogos eletrônicos possuem muitos pontos pendentes de estruturação e consolidação envolvendo as relações contratuais entre os principais players desse universo. Como prova disso, em 2021, o segmento de games movimentou, apenas no Brasil, cerca de US$ 2,3 bilhões (R$ 11,8 bilhões), fazendo do país o maior mercado da América Latina e o 12° do mundo.¹

Ainda falando sobre dados, no âmbito mundial, espera-se que o mercado de videogames bata um novo recorde, no valor de US$ 150 bilhões (R$ 803,5 bilhões), ainda este ano, na área de negócios em fusões e aquisições, financiamentos e IPOs (Ofertas Públicas Iniciais de Ações), conforme estimativa do banco de investimentos Drake Star Partners.²

Conforme dados da consultoria Newzoo publicados pelo jornal Folha de S. Paulo, diante desse cenário de crescimento, o mercado de videogames deve movimentar US$ 203,1 bilhões, ou seja, cerca de R$ 1 trilhão, ainda em 2022. ³

A indústria de jogos eletrônicos é um setor econômico que engloba diversas áreas, não se limitando ao mero desenvolvimento dos games, visto abranger, como exemplos, o marketing e a venda dos jogos. Esta indústria demanda mundialmente diversos recursos, relações e tecnologias, fato que demonstra a relevância de um liame bem estruturado.

Por isso, a presença de uma assessoria jurídica especializada em games é um ponto chave para destravar questões importantes do negócio, para que a relação entre as partes tenha seus riscos mitigados o máximo possível.

O processo de desenvolvimento de um game é longo e árduo, tendo em vista que abrange diversas nuances, desde a parte de desenvolvimento, até a etapa de distribuição, que normalmente é feita por uma empresa terceirizada, para o jogo chegar, enfim, ao público final. 

A principal função de uma publisher é, como o nome já remete, a publicação de jogos eletrônicos, que podem ser tanto desenvolvidos e publicados pela própria ou, ainda, produzidos por uma desenvolvedora e apenas lançados ao mercado pela publisher em outras plataformas e canais de distribuição. Em ambos os casos ela será responsável por protagonizar as iniciativas de marketing e de intermediação com as stores (lojas de games), podendo, inclusive, investir dinheiro para alavancar o número de downloads (user acquisition).

Ocorre que, eventualmente, noticiam-se casos envolvendo litígios, denúncias e até mesmos confrontos judiciais entre publishers e developers, que alegam ter firmado contratos abusivos, nos quais estabelecem a cessão total da Propriedade Intelectual, rescisão arbitrária da relação contratual pela publisher e a inexistência de regras claras sobre o pagamento de royalties ao desenvolvedor.

Isso se dá, muitas vezes, pela assimetria de informação, sendo que uma das consequências mais relevantes dessa ocorrência é a existência de comportamentos oportunistas por parte daquele que detém mais força ou conhecimento sobre a relação. Para evitar que isso ocorra, é fundamental contar com assessoria jurídica especializada em games..

Nesse sentido, o site PCGamer publicou uma notícia,4 acerca de um estúdio desenvolvedor indie – ou seja, quem desenvolve o jogo de forma independente – em que ele expôs, em suas redes sociais, que rejeitou um contrato de meio milhão de dólares em razão de cláusulas abusivas presentes no contrato.

Esta publicação realizada pelo desenvolvedor gerou diversos debates, na própria rede social, sobre contratos hostis oferecidos pelas publishers, em que outros desenvolvedores diziam já ter passado pela mesma situação, de modo que aparentam ser práticas muito comuns na indústria dos videogames.

Diante disso, compilamos, neste artigo, os principais questionamentos a serem observados quando for realizada uma negociação entre desenvolvedores de jogos (developers) e distribuidoras (publishers), bem como suas potenciais soluções.

 

COMO SERÁ REALIZADA A REMUNERAÇÃO? 

Na indústria de games, existem diversas formas de distribuição do Revenue Share (divisão da receita gerada com o game) que podem ser adotadas, tais como Gross Revenue, Net Revenue, Profit Share, entre outros.

Primeiramente, a opção pelo Gross Revenue contabilizará todas as receitas geradas pela publicação do game pela publisher; ou seja, é sinônimo de receita bruta.5 Nesse caso, a receita bruta normalmente é composta por: 

(a) receita efetivamente recebida por meio da compra no aplicativo do Game ou qualquer conteúdo, recurso ou item dentro ou em torno de qualquer Game em qualquer dispositivo nas Stores (lojas virtuais); 

(b) receita de compras pagas para baixar; 

(c) receitas de publicidade auferidas em conexão com o(s) Game(s); e 

(d) outras formas de receita relacionados aos Games que possam surgir através das Stores.

 

Já o Net Revenue corresponde ao Gross Revenue, descontados: i) taxas bancárias e impostos, pagos pela parte receptora da receita em relação à publicação de qualquer Game em sua conta; ii) retenção de comissionamentos por parte das Stores e Ads Networks ou inadimplência; e iii) reembolsos reportados por empresas de pagamento, Lojas Virtuais, Chargeback ou ainda outros reembolsos ou taxas comprovadas.

Por fim, o Profit Share significa o lucro obtido com as receitas do Game, sendo este equivalente ao Net Revenue menos o desconto de todas as despesas com os valores investidos em: i) aquisição de usuários, denominado User Acquisition, abrangendo todo e qualquer investimento financeiro em campanhas publicitárias e ofertas promocionais para a aquisição de novos usuários com o objetivo de potencializar as receitas dos Games; ii) pagamentos de licenciamento das marcas; e iii) custeio da produção dos games (cobrindo apenas custos da equipe alocada no desenvolvimento). 

Detalhar e acordar o percentual e a base de cálculo do Revenue Share entre as partes é extremamente importante para não haver litígios posteriores em relação a remuneração pelo sucesso do game.

 

DE QUEM SERÁ A PROPRIEDADE INTELECTUAL (PI)? 

Para fins de aclaramento, a Propriedade Intelectual discutida no contrato se refere a todos os direitos adquiridos relacionados a marcas registradas, nomes comerciais e de domínio, imagem comercial, design, topografia, software de computador, banco de dados, Informações Confidenciais (incluindo know-how e segredos comerciais), personagens, sonoplastia, enfim, todos os ativos intelectuais que envolvam o game.

Caso a cláusula de propriedade intelectual não esteja bem redigida, poderá abrir  brechas nocivas para que a publisher faça o que quiser com as criações, deixando o desenvolvedor completamente desassistido, justamente aquele responsável por toda a produção do game.

A título de exemplo, é pertinente trazer o caso da desenvolvedora Frogwares, que ingressou judicialmente contra a distribuidora Nacon, alegando que a publisher estava, conforme divulgado na notícia, “tentando se apossar por completo da IP, que é de propriedade da Frogwares.”6

 

EXISTE MULTA POR DESCUMPRIMENTO DO CONTRATO?

A multa contratual ou cláusula penal é uma cláusula acessória do contrato que define as consequências econômicas no caso de descumprimento contratual de um ou alguns encargos estabelecidos entre as partes.

“Assim sendo, o conceito mais completo de cláusula penal, pena convencional ou multa convencional, baseado em todos estes vistos anteriormente, é de que se trata de uma convenção acessória inserida em negócio jurídico unilateral ou bilateral, em que o devedor da obrigação se compromete, para o caso de inexecução completa da obrigação, de inexecução de alguma cláusula especial, ou simplesmente de mora, a uma sanção de natureza econômica, que pode ser de dar, fazer ou não fazer, nos limites fixados em lei.”7

 

A função principal dela é estimular o cumprimento integral das obrigações firmadas no contrato, dando ciência às partes das possíveis sanções pelo descumprimento. Ou seja, possui uma função positiva (estímulo ao cumprimento) e uma função negativa (punição caso não o faça). 

 

COMO SERÁ O ENCERRAMENTO DO CONTRATO?

Normalmente, a extinção regular do contrato se dá pelo cumprimento das prestações avençadas, podendo ser, ainda, encerrado pelo termo final.

Todavia, o contrato pode extinguir-se antes mesmo do cumprimento total ou parcial das obrigações. Isso pode ocorrer por diversos motivos, porém, normalmente, é provocado pelo descumprimento ou inadimplemento das obrigações estipuladas no contrato, como tratamos no tópico acima.

Uma situação bastante corriqueira ocorre quando a publisher não impulsiona o game, seja porque deixa de realizar ações de marketing, seja porque não investe recursos para a aquisição de usuários. Diante disso, o game pode ter um desempenho aquém do esperado e o estúdio não conseguir recuperar o valor investido no seu desenvolvimento.

Atenção especial deverá ser endereçada às cláusulas pós-contratuais, visto que sobreviverão à extinção ou término do contrato, permanecendo válidas e inalteradas, tais como  as cláusulas de confidencialidade e propriedade intelectual.

Além disso, é importante estabelecer as formas de extinção antecipada do contrato, cruciais para proteger os agentes em razão da desistência imotivada por qualquer das partes antes de cumpridas todas as obrigações convencionadas; a chamada resilição unilateral (art. 473 do Código Civil – caso o contrato seja regido pelas leis brasileiras).

Todos os fatores destacados na presente publicação servem para alertar as partes sobre a importância dos cuidados jurídicos na indústria de games. Para prevenir riscos e mitigar a incidência de posteriores desavenças, é necessário estar seguro na relação empreendida, principalmente em relação a diversas questões que devem estar devidamente alinhadas entre as partes, o que pode ser assegurado contando com suporte jurídico especializado e capacitado para a elaboração de instrumentos customizados à sua realidade e particularidades.

 


 

1Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mpme/2022/08/mercado-de-games-cresce-no-pais-e-atrai-cada-vez-mais-empreendedores.shtml

2Disponível em: https://noticias.r7.com/cidades/folha-vitoria/dados-indicam-avanco-do-mercado-brasileiro-de-games-16112022

3Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/tec/2022/07/conheca-as-principais-empresas-de-games-do-brasil.shtml  

4Disponível em: https://www.pcgamer.com/indie-publishing-contracts/

5De maneira resumida, a receita bruta é a receita total decorrente da atividade fim da empresa, ou seja, toda entrada de recursos das atividades para as quais a empresa foi constituída, conforme seu contrato social, sendo assim, todo produto da venda de bens e serviços da companhia, antes de qualquer dedução.  https://conteudos.xpi.com.br/aprenda-a-investir/relatorios/receita-bruta/

6Disponível em: https://www.arkade.com.br/frogwares-acusa-a-nacon-de-piratear-the-sinking-city-para-vende-lo-na-steam/

7CHRISTIANO CASSETTARI. Multa Contratual – Teoria e prática da cláusula penal. Editora Saraiva. Edição do Kindle.

 

 


 

*Nathally Reis, estudante da Escola de Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS) e bolsista de Iniciação Científica no Tecnopuc Startups, com atuação em projetos como o Startup Garage, no desenvolvimento do programa e na mentoria de startups, e no TecnopucLaw, iniciativa da escola de Direito para auxílio às empreendedores do Tecnopuc nas suas questões jurídicas. Atualmente, estagiária no Caputo Advogados Associados, assessoria empresarial especializada em startups e estúdios de games.

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