Patrimônio de Afetação

* Rafael Duarte

 

Um tema relativo ao mercado imobiliário, ainda pouco abordado, é a figura do patrimônio de afetação. Trata-se de inovação trazida pela Lei n. 10.931/04, cujo efeito principal é o de, em linhas gerais, impedir que o terreno, a construção, assim como bens e direitos vinculados àquele empreendimento, venham a responder por dívidas assumidas pela incorporadora que não digam respeito àquela incorporação.

 

O que é o Patrimônio de Afetação e por que foi criado?

Instituído o patrimônio de afetação, cria-se um “regime de vinculação de receitas, pelo qual as quantias pagas pelos adquirentes ficam afetadas à consecução da incorporação”1, ficando, assim, proibida a utilização de tais recursos para outras finalidades. Percebe-se, assim, que se trata de essencial instrumento de proteção dos interesses dos adquirentes, visto que estes, ao adquirirem unidades na planta, estão apondo capital em unidade imobiliária futura, ainda não edificada, do que se extrai o risco imanente a todo e qualquer empreendimento imobiliário.

A Lei n. 4.591/64, conhecida como a Lei de Incorporações Imobiliárias, foi elaborada com notória preocupação com a posição jurídica do adquirente de unidade autônoma futura (ex.: apartamento, escritório, casa, todos ainda “em planta”). Contudo, até o advento da Lei n. 10.931/04, só se falava em segregação de escrituração contábil para o regime de administração2, o que, na prática, significa manter contas-correntes separadas para cada empreendimento e, assim, evitar confusão de contas e desvio de recursos de uma incorporação para outra.

 

Quais problemas comuns do mercado imobiliário podem ser compensados com o Patrimônio de Afetação?

Durante décadas, o mercado experimentou práticas contábeis e jurídicas indevidas de algumas incorporadoras geridas equivocadamente, com prejudiciais confusões patrimoniais entre empreendimentos. A título ilustrativo, convém explicitar que uma mesma incorporadora pode ser responsável pelo desenvolvimento, simultâneo, de 5, 10, 15 empreendimentos, em diferentes cidades e diferentes Estados da Federação. O ciclo de uma incorporação imobiliária dura, em média, 36 meses3, o que decorre, principalmente, da necessidade de se amoldar uma série de fatores, desde a capacidade de pagamento dos adquirentes até o próprio tempo de concretização da obra. 

Isso significa que o empreendimento imobiliário pode ser tanto facilmente assimilado pelo mercado de consumo, quanto ser mal sucedido, a depender da localização, assertividade das campanhas publicitárias e timing de mercado. Em virtude disso, incorporadoras com práticas gerenciais indevidas utilizavam recursos de empreendimentos superavitários para compensar as perdas de incorporações deficitárias. Dentre elas, o caso paradigmático foi a da incorporadora Encol S.A. Engenharia, Indústria e Comércio, que teve sua falência decretada em março de 19994.

 Como o caso da Encol e de outras incorporadoras deixou milhares de adquirentes em situações periclitantes, com grandes dificuldades de recuperar o valor investido ou de terem seus respectivos empreendimentos assumidos por outros incorporadores, a Lei n. 10.931/04 foi sancionada em 2004, com o propósito de impedir que tais práticas fossem repetidas a partir daquele momento. 

 

O Patrimônio de Afetação é obrigatório por força de lei?

Um dos problemas práticos à consolidação do patrimônio de afetação no mercado encontra-se amparado no fato de que a sua adoção não é obrigatória; é, na verdade, mera faculdade do incorporador. Neste sentido, há quem defenda que o mais adequado seria modificar a lei, para o fim de esclarecer que a “afetação é requisito necessário do contrato de incorporação”5, tornando-a obrigatória. Todavia, essa não é a realidade atual.

Desse modo, empreendimentos não estruturados sob o regime do patrimônio de afetação não gozariam do benefício da segregação (afetação) patrimonial. Apesar disso, com o advento do Código de Processo Civil de 2015, uma inovação surgiu com grande relevância para os adquirentes, incrementando, conjuntamente, a proteção jurídica de tais compradores e a blindagem patrimonial da incorporação como um todo, beneficiando-se, assim, toda a coletividade de adquirentes.

Trata-se do art. 833, inciso XII, do CPC/15, que estipula a maior proteção aos recursos destinados à incorporação, ainda que o incorporador não tenha averbado o termo de afetação no Registro de Imóveis6 – quando do registro da incorporação –, prevendo a impenhorabilidade dos “créditos oriundos da alienação das unidades, vinculados à execução da obra”7.

Na prática, isso significa que, caso a gestão do empreendimento não seja realizada de modo satisfatório, colocando em risco o sucesso da incorporação por conta de débitos do incorporador – mas que em nada se relacionam com o empreendimento –, a coletividade de adquirentes poderá arguir, em sua defesa, a impenhorabilidade de todos os bens e direitos relativos à obra, visando a que os serviços sejam concluídos e as unidades entregues aos compradores.

 

Regime Especial de Tributação (RET) para o Incorporador que optar pelo Patrimônio de Afetação:

Sob a perspectiva do incorporador, para o fim de incentivá-lo a optar pelo patrimônio de afetação – visto este não ser obrigatório –, menciona-se a figura do Regime Especial de Tributação (RET). Trata-se de um tratamento tributário diferenciado, voltado especificamente para o empreendedor imobiliário que optar pela afetação patrimonial, caso em que recolherá tributo federal unificado, à alíquota de 4% (quatro por cento), abrangendo IRPJ, PIS, CSLL e COFINS, a incidir sobre a receita mensal.

Disso se pode extrair que o patrimônio de afetação atende não apenas aos interesses dos adquirentes, mas também das incorporadoras imobiliárias, visto que servirá, a um só tempo, como argumento publicitário (incremento robusto na proteção do potencial comprador de unidades futuras) e como fator de significativa redução da carga tributária incidente sobre as receitas extraídas da atividade empresarial, fatores estes que, juntamente, impactarão o Valor Geral de Vendas (VGV)8 e o lucro final auferido pelo incorporador.

Para maiores informações sobre Direito Imobiliário, acompanhe nossas postagens e aguardamos comentários e dúvidas! 

 


1CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 4. ed. rev. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 76.

2CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 4. ed. rev. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 83.

3O ciclo da incorporação imobiliária. Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias. São Paulo, 2015. Disponível em: https://abrainc.org.br/wp-content/uploads/2015/08/Abrainc_cartilha_rev_17_08.pdf. Acesso em: 30 de jul. de 2020.

4RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 394.

5PEREIRA, Caio Mário da Silva; atualizadores: Sylvio Capanema de Souza, Melhim Namem Chalhub. Condomínio e incorporações. 13. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro, Forense, 2018. p. 293.

6PEREIRA, Caio Mário da Silva; atualizadores: Sylvio Capanema de Souza, Melhim Namem Chalhub. Condomínio e incorporações. 13. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro, Forense, 2018. p. 290.

7Código de Processo Civil. Art. 833. São impenhoráveis: […] XII – os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra.

8VGV: Sigla para Valor Geral de Vendas, soma dos valores monetários em moeda corrente (R$) das unidades comercializadas no período”. Indicadores Imobiliários Nacionais. Câmara Brasileira da Indústria da Construção Civil. Disponível em: https://cbic.org.br/wp-content/uploads/2017/11/Indicadores_Mobiliarios_Nacionais_2017.pdf. Acesso em: 30 de jul. de 2020.


*Rafael Duarte, Sócio do escritório Caputo Advogados, com atuação especializada em Empresas de Base Tecnológica e Startups. Pós-graduando em Direito Digital e Proteção de Dados; Pós-graduado em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul; Pós-graduado em Direito Negocial Imobiliário pela Escola Brasileira de Direito; Pós-Graduado Direito Imobiliário pela Faculdade Legale/SP; Pós-graduado em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade Legale/SP; Mentor em programas de empreendedorismo e desenvolvimento de negócios inovadores, tais como Inovativa Brasil, entre outros; Membro da Comissão Direito Imobiliário da OAB/RS; Membro da Comissão de Direito Sucessório do IBDFAM/RS.

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