Guia Prático de Cessão e Licenciamento de Propriedade Intelectual

*Rafael Duarte

 

PROPRIEDADE INTELECTUAL COMO GÊNERO

A Propriedade Intelectual pode ser entendida como um conceito “guarda-chuva”, a comportar uma multiplicidade de ramificações, cuja relevância para o Direito Pátrio é tamanha que lhe confere uma seção própria da ciência jurídica (Direito da Propriedade Intelectual). 

Pode ser definida como “o tipo de propriedade que resulta da criação do espírito humano.1, sendo o desdobramento natural da conscientização de que as criações humanas são dotadas de valoração econômica e, como tal, precisam integrar o universo jurídico negocial. 

Dentro desse grande “guarda-chuva”, há três principais seções: (i) Direito Autoral; (ii) Propriedade Industrial; e (iii) Proteção Sui Generis, com espécies internas, detalhadas na tabela abaixo:

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Na publicação de hoje, vamos abordar como essas diversas formas de expressão da criatividade humana podem transitar no universo jurídico – primordialmente na seara contratual -, trazendo importantes recomendações e dicas práticas para que essas negociações sejam realizadas com a segurança e a cautela necessárias. 

 

DISTINÇÃO ENTRE DIREITOS MORAIS E PATRIMONIAIS 

Uma diferenciação conceitual bastante recorrente no universo da propriedade intelectual é a existência de direitos morais e patrimoniais. Tratam-se de termos aplicáveis à seção dos Direitos Autorais,3 uma vez que essa espécie admite a sua fragmentação nas esferas moral e patrimonial. Quanto aos demais criativos intelectuais – notadamente na propriedade industrial (ex.: marca, patente e desenho industrial) -, esses conceitos de direitos morais e patrimoniais não se aplicam.

Vale destacar que, como visto na tabela anterior, o software (programa de computador) também é objeto de tratamento jurídico como direito autoral e também se amolda a essa distinção. No universo de empresas de base tecnológica, portanto, estar ciente de regras aplicáveis a softwares é indispensável.

Dessa forma, sempre que uma obra intelectual é desenvolvida, a ela são inerentemente assegurados direitos morais e patrimoniais, que podem, por sua vez, serem ambos titularizados pela mesma pessoa ou por pessoas distintas. Daí se verifica a cindibilidade dos direitos autorais, de modo a possibilitar que se providencie sua transferência.

A grande particularidade, contudo, reside no fato de que não há a possibilidade de se fazer a transferência (cessão, como se verá a seguir) dos direitos autorais morais, mas tão somente dos direitos autorais patrimoniais. Os direitos morais são merecedores de um tratamento jurídico diferenciado, a lhes conferir as características de inalienabilidade (impossibilidade de vender esses direitos a terceiros), irrenunciabilidade (impossibilidade de renunciar ou “abrir mão” desses direitos) e imprescritibilidade (impossibilidade de perder tais direitos por usucapião), tudo com fundamento no art. 27 da Lei dos Direitos Autorais, características estas que provêm da sua correlação direta com os direitos fundamentais, assegurados constitucionalmente. 

Você pode estar se perguntando, portanto, que direitos morais são esses e o que você, como autor, tem garantido em seu favor por força de lei. E a resposta pode ser encontrada no art. 24 da Lei dos Direitos Autorais (Lei Federal nº 9.610/98): são ao todo 7 (sete) incisos, dentre os quais podem ser destacados os direitos de: (i) reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; (ii) conservar a obra inédita, caso assim deseje; (iii) modificar a obra, antes ou depois de utilizada; (iv) retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem. 

A segunda presunção que se poderia ter é que: “Bom, se o software é direito autoral, e o direito autoral confere ao autor os direitos morais, todo esse artigo 24 da lei se aplica para o autor de um programa de computador, correto?” É aí que você se engana. O software tem lei própria (Lei Federal nº 9.609/98), a prever, no seu art. 2º, § 1º, que:

Lei do Software. Art. 2º […] Não se aplicam ao programa de computador as disposições relativas aos direitos morais, ressalvado, a qualquer tempo, o direito do autor de reivindicar a paternidade do programa de computador [LDA. Art. 24, inciso I] e o direito do autor de opor-se a alterações não-autorizadas, quando estas impliquem deformação, mutilação ou outra modificação do programa de computador, que prejudiquem a sua honra ou a sua reputação [LDA. Art. 24, inciso IV].

 

Essa distinção é fundamental para que você saiba exatamente como regular o tema em seus contratos de licenciamento e cessão de propriedade intelectual, como abordaremos logo mais em tópico específico.

 

DISTINÇÕES TÉCNICAS E PRÁTICAS ENTRE CESSÃO E LICENCIAMENTO

Dentre as possibilidades de negociação envolvendo propriedade intelectual, são dois os principais tipos de contratos: licenciamento e cessão

O contrato de licenciamento possui natureza de “uso e gozo”4, de modo que, por meio de referida espécie contratual, não há qualquer forma de transferência de titularidade sobre o criativo intelectual. Há tão somente uma autorização – em regra, temporária -, outorgada pelo licenciante (o titular da propriedade intelectual), para que o licenciado (o interessado em utilizá-la) valha-se dessa propriedade intelectual em conformidade com os termos pactuados e circunscritos aos limites impostos. 

Ainda, o licenciamento poderá ser oneroso – hipótese na qual o licenciado realiza o pagamento de royalties em favor do licenciante -, em operação que muito se assemelha a uma locação; ou, ainda, poderá ser gratuito, cenário no qual não há qualquer pagamento de royalties, com forte similitude com o comodato.5

Por meio do licenciamento, abre-se a possibilidade para que terceiros tenham acesso à obra – seja apenas para utilização própria ou para comercialização -, abrangendo a totalidade da propriedade intelectual ou apenas parte dela (licenciamento total ou parcial), bem como admitindo-se o uso apenas por determinado licenciado ou para diversos licenciados (licenciamento exclusivo ou não exclusivo). 6

O contrato de cessão, por sua vez, consiste numa efetiva transferência de titularidade, feita pelo cedente (o titular da propriedade intelectual) em prol do cessionário, fazendo com que aquele não mais possa “decidir como será a divulgação, publicação, exposição, venda ou comercialização.7 do objeto a ser cedido. É justamente por isso que se entende que a cessão é muito assemelhada à compra e venda. 

Quanto às modalidades de cessão, admite-se a sua divisão quanto ao conteúdo (total ou parcial) e quanto à forma (universal ou singular), cujo detalhamento pode ser mais bem aferido na seguinte tabela:

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Uma das principais formas para se consolidar a diferenciação entre licenciamento e cessão é promover a seguinte comparação analógica: a cessão está para o licenciamento assim como a compra e venda está para a locação

Considerando haver, ainda, uma série de outros pontos distintivos entre licenciamento e cessão, traz-se mais uma tabela comparativa, visto que a ilustração é muito mais elucidativa9:

Cessão Licenciamento
Definição Transferência permanente dos direitos autorais Autorização temporária para uso da obra.
Prazo Sem prazo determinado, salvo disposição em sentido distinto. Prazo determinado no contrato de licença.
Titularidade Cessionário se torna titular dos direitos. Titularidade permanece com o autor.
Exploração Plena, total ou parcialmente. Limitada nos termos do contrato de licença.
Modificação Passível de autorização pelo cedente.  Geralmente não é permitido ao licenciado.
Exclusividade Exclusiva ou não. Exclusiva ou não.
Formalidade Formal, contrato escrito. Formal, contrato escrito.

 

ORIENTAÇÕES PRÁTICAS EM AMBAS AS ESPÉCIES DE NEGOCIAÇÃO

Agora que você já está familiarizado com todos os detalhes mais teóricos e técnicos envolvendo licenciamento e cessão de propriedade intelectual, vamos botar a mão na massa e entrar na parte prática desses dois tipos contratuais tão importantes para toda e qualquer empresa de tecnologia. 

O ponto de partida está nos arts. 49-52 da Lei dos Direitos Autorais. O art. 49, mais especificamente, detalha as limitações envolvendo os contratos de cessão de direitos autorais, o que faz nascer as seguintes orientações que julgamos principais:

Inciso II –  somente se admitirá transmissão total e definitiva dos direitos mediante estipulação contratual escrita → Logo, se você estiver em contrato constando como cessionário, um contrato omisso quanto à transmissão total e definitiva não atenderá às suas necessidades;

Inciso III – na hipótese de não haver estipulação contratual escrita, o prazo máximo será de cinco anos → Caso a intenção seja uma transferência definitiva sem limitação temporal, eventual omissão no contrato fará com que, após 5 anos, os direitos retornem ao cedente, algo que, muito provavelmente, pode conflitar com o seu interesse no negócio;

Inciso IV – a cessão será válida unicamente para o país em que se firmou o contrato, salvo estipulação em contrário → Logo, se houver interesse em adquirir os direitos com a possibilidade de expandir internacionalmente, um contrato omisso impedirá que isso se realize;

Inciso VI – não havendo especificações quanto à modalidade de utilização, o contrato será interpretado restritivamente, entendendo-se como limitada apenas a uma que seja aquela indispensável ao cumprimento da finalidade do contrato → Como “modalidades de utilização”, podem ser mencionadas, como exemplos, os direitos de publicar, reproduzir, fazer tiragens, editar, traduzir ou adaptar. Se o contrato for omisso, não haverá como ampliar esse rol.

 

No caso do software, mais especificamente, há dois artigos previstos na Lei do Software merecedores de destaque: os arts. 4º e 11: (i) o art. 4º prevê que, em regra, os direitos relativos ao programa de computador, desenvolvido e elaborado durante a vigência do contrato, serão de titularidade do empregador ou do contratante dos serviços; e (ii) o art. 11 prevê que, nos casos de cessão de software, o contrato correspondente deverá ser registrado no INPI, como forma de assegurar publicidade em relação a terceiros. 

No caso do art. 4º, é preciso destacar que, apesar de a Lei prever essa garantia para o contratante dos serviços como regra, a cautela não é demasiada; ou seja, a recomendação é bastante direta: sempre prever nos contratos de trabalho ou de prestação de serviços, cláusula expressa conferindo em favor do empregador/contratante a titularidade sobre os criativos

No caso do art. 11, referido dispositivo confere, ainda, orientações práticas sobre como deve ser feito esse registro do contrato junto ao INPI, a determinar que deve ser entregue documentação completa do programa de computador, contemplando: (i) código-fonte comentado; (ii) memorial descritivo; (iii) especificações funcionais internas; bem como (iv) diagramas, fluxogramas e outros dados técnicos necessários à absorção da tecnologia. 

No caso específico dos contratos de licenciamento, é instrumental que haja orientações claras sobre as condições de exploração da obra pelo licenciado, destacando-se itens como prazo, remuneração e as modalidades de uso autorizadas. O limite temporal do licenciamento é ponto fundamental, dado que, na imensa maioria dos casos, não será outorgada a licença a título perpétuo, e sim temporário, devendo as partes fazer constar com clareza o prazo para terem previsibilidade para conduzirem as suas atividades. 

Por fim, sempre que houver a intenção de criação de parcerias, colaborações empresariais ou joint ventures contratuais, os cuidados contratuais deverão ser redobrados. Isso porque, em tais casos, a lei não prevê uma solução clara, de modo que a solução dada pelas partes em contrato ganha relevo. Nessa conjuntura, uma opção bastante praticada no mercado é a de definir os percentuais de cada parte, que poderão ser aplicados tanto para a definição da forma de custeio para desenvolvimento do criativo intelectual, quanto para, posteriormente, ratear os resultados econômicos decorrentes de sua exploração comercial. Um contrato omisso será fatalmente palco de dúvidas e conflitos entre os parceiros comerciais, o que, por óbvio, não é desejável.

 

CONCLUSÃO

Na publicação de hoje, analisamos diversas particularidades envolvendo os contratos de cessão e licenciamento de propriedade intelectual, temas que ganham relevo haja vista o papel de evidente protagonismo da PI em todo e qualquer modelo econômico tecnológico, não apenas com a criação de softwares, como com patentes, marcas, desenhos industriais, direitos autorais e conexos, etc.

Compreender as diferenças conceituais entre essas duas espécies de negociação e a sua aplicabilidade para todo esse “mundo” próprio das criações intelectuais humanas é abrir as portas para uma multiplicidade de opções de contratos a serem firmados, com segurança, com parceiros, colaboradores, clientes e fornecedores, sempre com o foco na adoção das melhores práticas e redução de riscos jurídicos. 

É justamente por isso que todos os empreendedores que, de alguma forma, utilizam-se de propriedade intelectual no desenvolvimento de seus negócios – e, atualmente, é virtualmente improvável que você não “cruze o caminho” com a PI -, precisam, contar com suporte jurídico especializado, para que possam tomar as melhores decisões negociais possíveis, com a devida ciência das repercussões jurídicas de todas as possibilidades ventiladas. Os riscos são inerentes de qualquer atividade empresarial, razão pela qual o erro, portanto, não está na assunção de tais riscos; o erro está em assumir riscos dos quais não se tem conhecimento, por falta de preparo e apoio suficientes. 

Todos esses fatores fazem com que o investimento na construção de uma rede de apoio técnico especializado na área jurídica seja instrumental ao seu sucesso e tranquilidade no crescimento de suas atividades. Isso poderá representar não apenas fonte de maior segurança jurídica, como também um grande diferencial competitivo, na medida em que os instrumentos contratuais serão redigidos com a adoção das melhores práticas, para o fim de efetivamente reduzir litígios, e não incrementá-los. 

Para maiores informações e publicações relacionadas com segmento societário, de franquias e de propriedade intelectual, fique conectado no site e nas redes sociais da Caputo Advogados.

 

 

 


*Rafael Duarte – Advogado, sócio do escritório Caputo Advogados, com atuação especializada em Startups, Studios de Games e Empresas de Base Tecnológica. Pós-graduando em Direito Digital e Proteção de Dados; Pós-graduado em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul; Pós-graduado em Direito Negocial Imobiliário pela Escola Brasileira de Direito; Pós-Graduado em Direito Imobiliário pela Faculdade Legale/SP; Pós-graduado em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade Legale/SP; Mentor em programas de empreendedorismo e desenvolvimento de negócios inovadores, tais como InovAtiva Brasil, START (SEBRAE), entre outros; Diretor da Associação Gaúcha de Direito Imobiliário Empresarial (AGADIE); Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/RS e Membro da Comissão de Direito Sucessório do IBDFAM/RS.

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1Tipos de Propriedade Intelectual. Instituto Federal – Paraná, 2023. Disponível em: https://ifpr.edu.br/institucional/pro-reitorias/proeppi/agif/propriedade-intelectual/tipos-de-propriedade-intelectual/. Acesso em: 18 nov. 2023.

2Tipos de Propriedade Intelectual. Instituto Federal – Paraná, 2023. Disponível em: https://ifpr.edu.br/institucional/pro-reitorias/proeppi/agif/propriedade-intelectual/tipos-de-propriedade-intelectual/. Acesso em: 18 nov. 2023.

3Lei dos Direitos Autorais. Art. 27. Os direitos morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis.

4Resende, Viviane. Direitos Autorais: Cessão ou Licença? VR Advocacia, 2021. Disponível em: https://vivianeresende.com/direitos-autorais-cessao-ou-licenca/. Acesso em: 22 out. 2023.

5Potestino, Rebeca Querido. Cessão e licença de uso: conheça a diferença entre os contratos. Administradores, 2018. Disponível em: https://administradores.com.br/noticias/cessao-e-licenca-de-uso-conheca-a-diferenca-entre-os-contratos. Acesso em: 22 out. 2023.

6Sugimoto, Erick. Entenda a diferença entre cessão e licenciamento nos direitos autorais. JusBrasil, 2023. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/entenda-a-diferenca-entre-cessao-e-licenciamento-nos-direitos-autorais/1789797136. Acesso em: 22 out. 2023.

7Resende, Viviane. Direitos Autorais: Cessão ou Licença? VR Advocacia, 2021. Disponível em: https://vivianeresende.com/direitos-autorais-cessao-ou-licenca/. Acesso em: 22 out. 2023.

8Sugimoto, Erick. Entenda a diferença entre cessão e licenciamento nos direitos autorais. JusBrasil, 2023. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/entenda-a-diferenca-entre-cessao-e-licenciamento-nos-direitos-autorais/1789797136. Acesso em: 22 out. 2023.

9Sugimoto, Erick. Entenda a diferença entre cessão e licenciamento nos direitos autorais. JusBrasil, 2023. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/entenda-a-diferenca-entre-cessao-e-licenciamento-nos-direitos-autorais/1789797136. Acesso em: 22 out. 2023.

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